sábado, 2 de setembro de 2006

Duas cenas em um teatro de espanto

Cena 1:

Estou lá, sentadinho como bom papai cumpridor de suas obrigações festivas, assistindo tranquilamente à peça "O sumiço dos papais", encenada pelas criancinhas da escolinha onde meu filho faz o "Jardim II". No meio delas o meu pequeno gene replicante parece feliz e orgulhoso de si mesmo.

De repente a peça é interrompida. O narrador anuncia que o sumiço dos papais foi tão preocupante que saiu até no noticiário da escolinha. Um grande telão desce do teto, as luzes se apagam e... Pimba! Eis que surge meu pequeno menino lendo uma notícia como se fosse gente grande.

Engasga em algumas palavras, não acompanha exatamente a sonoridade das frases e, ao final, não sabe o que fazer quando o texto termina. Mas, por Tutatis, ele só tem cinco anos!



Confesso, espantei-me.

Meu lado arrogante e presunçoso admite tranqüilamente a possibilidade de que ele seja tão genial quanto os pais dele, mas há um outro lado meu que me diz que talvez ele seja apenas tão brilhante quanto qualquer outro que tenha à sua disposição livros, revistas, brinquedos, liberdade, incentivo e uma infância relativamente feliz.

Nós nunca o forçamos a ler nada, não exigimos tarefas e atividades, não impomos rigorosos horários de "estudo" ou "disciplina". Tudo o que fizemos até agora foi lhe dar a liberdade de escolher e um merecido sorriso sempre que suas escolhas nos parecem boas. E assim, sendo livre para aprender, ele aprendeu por escolha própria. Aprendeu e compreendeu que aprender é bom.

Cena 2:

Estou no supermercado, na seção de higiene pessoal, tentando encontrar uma escova de dentes nova. Sou abordado por uma senhora, já do alto dos seus sessenta ou setenta anos. Talvez menos, pois as rugas medem mais o sofrimento do que os anos de vida.

Ela traz na mão um vidrinho de sal-de-frutas e nos olhos tímidos uma pergunta relutante, envergonhada, quase triste: esse é o...?

Sim, respondo a ela, é o sal-de-frutas ENO. A embalagem mudou, mas é o mesmo sal-de-frutas.

Ela olha de novo para as letrinhas. Lhe parecem mesmo familiar, mas ela precisava ter certeza. Sua memória já não deve ser das melhores e com a nova embalagem diferente a certeza já não existe mais. Era preciso ler para saber. Era preciso se informar para acompanhar as mudanças.

Três letras, um nome simples, uma marca conhecida. Uma vida inteira rendendo-se cabisbaixa diante de três míseras letras.

Confesso, espantei-me novamente.

Nesse teatro do espanto há duas impossibilidades possíveis: de um lado um garoto de cinco anos que aprende "quase sozinho" a ler frases inteiras e compreender o sentido delas, do outro uma senhora que não consegue juntar três letras para reconhecer um nome simples.

Há algo de muito errado aqui. Se um garoto de cinco anos exposto à um bom punhado de estímulos pode aprender a ler quase sozinho, o que fez então com que aquela senhora passasse toda uma vida sem aprender a juntar três letras formando um simples nome?

Meu garoto já pode escolher pela marca os produtos que quiser, já pode ler placas de ônibus, de ruas, cartazes, etc. Já faz palavras cruzadas e está aprendendo a encontrar o significado das palavras desconhecidas usando para isso um dicionário. Mas aquela senhora não pode andar de ônibus, não pode achar o nome de uma rua em uma placa, não pode sequer comprar um sal-de-frutas. Como pudemos admitir que essa situação existisse e ainda persista? Qual não deve ser nossa vergonha? Certamente deve ser muito maior do que a dela. Eu, pelo menos, não sei onde pôr minha cara.