segunda-feira, 24 de maio de 2010

O fracasso do Ensino Médio público - a senzala pós-moderna

O Ensino Médio público tem se mostrado um grande fracasso dentre as etapas do Ensino Básico. É inegável que os alunos egressos do Ensino Médio público raramente podem ser considerados alfabetizados no sentido pleno do termo e, quase invariavelmente, desistem de continuar seus estudos ou acabam estudando em faculdades particulares de "péssima qualidade", segundo a avaliação de parte da "elite das universidades públicas" que faz parte dos formadores de opinião da mídia. Nos exames do ENEM, ou mesmo do Saresp (em São Paulo), os resultados do Ensino Médio são deploráveis. Se sabemos disso tudo, porque nenhum de nós faz nada a respeito?

Talvez porque o Ensino Médio regular público tem sido simplesmente desprezado de todas as agendas de melhoria da qualidade do Ensino Público dos nossos políticos.. Talvez porque essa falta de vontade de melhorar o Ensino Médio público parta também de dentro da própria Universidade Pública e da elite que ela tem criado, e que se acredita pensante, que formula políticas públicas e dá suporte aos políticos da vez. Ou, ainda, talvez seja porque o Ensino Médio público tenha a pretensão histórica de ser uma etapa intermediária entre o Ensino Fundamental e o Ensino Superior, ao invés de assumir de vez uma identidade mais próxima do Ensino Técnico, à qual estaria, talvez, melhor associada.

Desde a década de 70 o Ensino Médio público vem sendo sucateado, juntamente com o Ensino Fundamental, mas de forma bem mais acentuada nas últimas duas décadas. As escolas perderam seus laboratórios de ciências, suas bibliotecas, seus bons professores (que migraram para a rede privada) e seu status de "locais de ensino". Hoje as escolas públicas são melhores vistas como depósitos de crianças e adolescentes que os mantém trancados sob grades enquanto os pais trabalham. Do lado didático-pedagógico-operacional as grades horárias das disciplinas foram reduzidas, inseriu-se novas disciplinas, achatou-se os salários dos professores, implantou-se modelos pedagógicos inadequados e esdrúxulos e, por fim, despejou-se na escola de Ensino Médio todo o pacote de alunos analfabetos-funcionais provenientes do fracasso da progressão continuada, implementada no Ensino Fundamental para dar suporte a uma universalização artificial do ensino público.

Portanto, antes de continuarmos com esse tema, há uma pergunta que precisa ser refletida (porque "respondida" seria muita pretensão) por todos que trabalham com Educação: como é possível para o professor do Ensino Médio ensinar conteúdos e disciplinas "do Ensino Médio" para alunos da sexta-série do Ensino Fundamental? Os números oficiais, resultantes dos índices de aprendizagem medidos por exames como o Saresp (de São Paulo), indicam que os alunos que chegam ao Ensino Médio, em sua maioria vindos do sistema de progressão continuada (oficial ou na forma de "caixa dois"), estão,  no mínimo, três anos defasados em termos de aprendizagem (em alguns locais essa defasagem é ainda maior, bem maior!). Ou seja, no primeiro ano do Ensino Médio recebemos alunos que estão, de fato, na sexta-série do Ensino Fundamental.

O currículo do Ensino Médio é uma tremenda piada de mau gosto, pois pressupõe que o aluno deva aprender uma infinidade de temas e "conteúdos" em um espaço de tempo irrisório. Em física, por exemplo, o aluno precisa aprender todo o conteúdo da física classica e mais os rudimentos de física moderna em um tempo total de 240 horas, das quais nem metade é efetivamente destinada ao "tempo de aprendizagem". A mesma situação se verifica em outras disciplinas e, em algumas, é ainda pior.

Se antes o aluno tinha que aprender toda a história da humanidade e, em especial, toda a história do Brasil, em apenas duas aulas semanais, agora, em muitas escolas, ele tem que aprender tudo isso em metade do tempo, porque a outra metade do tempo, que já era irrisório, transformou-se em uma nova disciplina (geralmente filosofia ou sociologia, mas não necessariamente). Então ele não aprende nem história, nem filosofia e nem sociologia. Simples assim!

A cada ano algum "sábio" propõe uma nova disciplina para o Ensino Médio, mas ninguém quer excluir as que já existem, e muito menos os tópicos curriculares das disciplinas atuais. É como querer enfiar cinco elefantes em um fusca! E os "sábios" que pensam o currículo e a educação nos respondem: "É simples, coloquem dois elefantes nos bancos da frente e três no banco traseiro!".

Um número cada vez maior de alunos desistem do Ensino Médio público porque "não gostam de estudar", acham a escola "chata" e não têm motivação sequer para irem às aulas. Um número um pouco menor desiste porque arruma algum subemprego e acredita que com isso poderá encaminhar o resto de sua vida,  constituir uma família e educar bem os seus filhos. Muitos pais apóiam essa idéia porque também não acreditam que a escola fará alguma diferença e que o trabalho, em si, já é uma ótima escola. Em uma primeira aproximação, bastante ingênua até, poderíamos imaginar que basta então termos aulas mais interessantes e esses alunos não deixarão mais a escola, mas mesmo com aulas interessantes (diversificadas, contextualizadas, fazendo uso de recursos modernos, etc.) esses alunos não têm interesse e continuam desistindo da escola. O que seria então "interessante para esses alunos"?

Sabemos, da pedagogia, da psicologia e da observação pura e simples desses alunos adolescentes e jovens, que um aluno não se interessa por aquilo que não consegue aprender ou por aquilo que esteja distante demais de sua realidade e de seus interesses imediatos. Adolescentes nunca tiveram, e nem terão, interesses gritantes em aprender física, matemática, química, história, etc., simplesmente porque vivem uma época de suas vidas onde há outros interesses bem mais prementes: sexo, relacionamento social, auto-afirmação, aceitação pelo grupo, independência econômica dos pais e alguma diversão, dentre outros. São poucas e raras as oportunidades para um professor contemplar esses interesses em uma aula de física ou de matemática, por exemplo.

Em outros tempos, e para outros públicos que não o que atualmente ocupa os assentos das escolas públicas, além de abrir portas para o mercado de trabalho o Ensino Médio público também significava uma transição e uma preparação para o Ensino Superior. Tinha-se a convicção de que era preciso aprender os conteúdos dessas disciplinas para que se pudesse ter acesso à universidade. E, nessa época, ou ainda hoje em dia para esse público "seleto", oferecia-se o chamado "ensino propedêutico", isto é, aquele cuja função era apenas preparar o aluno para continuar aprendendo em outro nível superior. Tão criticado que foi, o ensino propedêutico acabou disfaçado no novo paradigma do "aprender a aprender", pois aprende-se a aprender com que objetivo senão o de aprender um pouco mais logo adiante? É claro que alguém dirá que o paradigma de "aprender a aprender" inclui bem mais do que apenas aprender para continuar aprendendo conteúdos de disciplinas, e inclui mesmo, mas no fundo já não era isso o que se fazia antes, no chamado ensino propedêutico do qual grande parte de nós, com mais de quarenta, somos fruto?

O Ensino Médio público também já viveu seus dias de ensino preparatório para carreiras profissionais, ou profissiionalizantes, e ainda hoje se fala, oficialmente, em um Ensino Médio público que capacite o aluno para enfrentar o desafio do mercado de trabalho. Apesar disso, a falta de mão obra qualificada aumenta a cada dia e é cada vez mais difícil conseguir formar bons engenheiros, médicos e professores, por exemplo. Sem falar nos profissionais de nível técnico.

Hoje o Ensino Médio público não preparada mais para a univesidade, e continua não preparando para o trabalho e menos ainda para a vida. É triste ter que quase concordar com o aluno que o abandona porque a escola não lhe interessa, mas de fato o que há de interessante nesse Ensino Médio público que nada ensina, para nada serve e a ninguém contribui com coisa alguma?

Sem perspectivas, oriundo de um ensino desvinculado da realidade, do mercado de trabalho e do próprio currículo, o aluno egresso do Ensino Médio sai da escola com a nítida sensação de que apenas perdeu três anos de sua adolescência. E talvez tenha sido isso mesmo.

Entremeio a tanto fracasso e desolação, parece estar nascendo novas iniciativas de "reformulação do Ensino Médio". Isso soa moderno, mas essas reformulações estão ocorrendo desde que o Ensino Médio foi criado e até agora nenhuma conseguiu dar algum sentido para esses três anos que os adolescentes perdem em suas vidas "não aprendendo nada útil", e que tem servido apenas para distribuir certificados que nada certificam e para mascarar um pouco mais as estatísticas oficiais sobre a universalização do ensino. Será que não seria então o caso de simplesmente extinguirmos o Ensino Médio público regular e transformá-lo de vez em um "Ensino Técnico" que, pelo menos, dê algum significado e alguma importância real para ele?

A universidade pública, por sua vez, nunca se importou realmente com o que acontece no Ensino Médio público, pois sempre aplicou exames vestibulares para selecionar aqueles candidatos que ela julga terem melhores condições de ocuparem suas cadeiras: a elite intelectual, segundo ela mesma se orgulha em reafirmar sempre. A universidade sempre se viu, e ainda se vê, como algo "à parte da educação básica"  e que "vive em uma ilha de excelência por mérito próprio" (com exceção, talvez, dos seus próprios departamentos de educação, que formam professores para a Educação Básica - poucos, na verdade - e que vivenciam um pouco mais de perto a realidade do Ensino Médio).

Porém, após a "democratização" do acesso ao Ensino Superior, verificada com o aumento exponencial de vagas oferecidas por universidades particulares, toda a "sujeira" que essa ilha sempre despejou no oceano social, como subproduto de uma educação excludente (como a rejeição clara a um ensino que atinja a  maioria da população) está vindo à tona e poluindo nossas "belas praias sociais". Já não se pode mais esconder que a as universidades públicas estão diretamente relacionadas ao sucesso ou ao fracasso das políticas públicas e dos modelos pedagógicos que elas mesmas elaboram.

Cada vez mais temos profissionais formados por universidades privadas reconhecidas pelo MEC cuja formação é ridícula e temerária (e as universidades públicas também começam a contribuir para o aumento desse número). Só para ficar em dois exemplos onde isso pode ser bem mensurado, voltemos os nossos olhos para os advogados e para os professores: em ambos os casos o número desses profissionais formados e diplomados que conseguem passar no "exame da ordem" (no caso dos advogados) ou em concursos públicos para o magistério (no caso dos professores) é completamente inexpressivo. Em algumas áreas, como no magistério da disciplina de física, esse número é quase nulo.

Dirão, os iluminados de algumas dessas universidades públicas, que a culpa é do péssimo ensino que as universidades particulares oferecem aos seus alunos (como que dizendo: veja como "nós" somos bons!), mas porque esses alunos não estão então na universidade pública, sendo beneficiados por esses excelentes professores que se arrogam ao direito de julgar o resto do mundo como incompetente, ao invés de estarem nessas universidades meia-boca que tanto se critica? A resposta é bem simples: porque a universidade pública não é assim tão pública e rejeita a grande maioria dos alunos egressos do Ensino Médio público, obrigando-os a estudarem nas universidades particulares que os aceitam.

Muitos dirão que é uma questão de "mérito", onde apenas os "bons alunos" podem usufruir do ensino gratuito dessas universidades, mas que mérito essa universidade têm ao se apartar da sociedade e se julgar no direito de escolher seus alunos? Justamente por serem públicas e, principalmente, por terem tantos recursos materiais e humanos, elas não deveriam ter a compentência que gostam tanto de exigir das outras universidades e do Ensino Médio público: a competência de ensinar bem a qualquer um?

A Fuvest, fundação encarregada de selecionar os alunos da USP, por exemplo, recusou 117.332 alunos no seu último vestibular (2010), ou seja, 91,5% dos candidatos! Imagine que glória seria para o professor do Ensino Médio público se ele pudesse escolher apenas 9 de cada 100 alunos da escola para os quais lecionar! Certamente teríamos um Ensino Médio público de excelência, não é? Ou se, em uma dada escola de Ensino Médio qualquer, defensora do pressuposto do "mérito", 91,5% dos alunos aprovados na oitava série (ou nona série do novo Ensino Fundamental de nove anos) fossem recusados no Ensino Médio por não serem bons alunos ou não demonstrarem aptidão para prosseguirem seus estudos nesse nível? O que diriam os pedagogos da USP a respeito? O que diriam os políticos a respeito? O que diria a sociedade a respeito?

O que essa lógica da meritocracia, tão na moda, nos diz sobre o Ensino Médio público? Parece que a  única lógica que restou para o Ensino Médio público atual resume-se a produzir semi-analfabetos para suprir o mercado de mão-de-obra barata, ou rechear os bolsos dos proprietários de universidades particulares que serão taxadas como ruins porque receberam alunos ruins, mas que não se importam e os devolvem mais tarde igualmente ruins, apenas com menos dinheiro. Os "bons alunos" já não estão no Ensino Médio público e, como "os alunos de antigamente", optaram por um ensino propedêutico que os leve para a univesidade pública, essa sim, excelente e meritocrática que, por sua vez, acredita que tudo isso seja "natural" e que ela esteja cumprindo seu papel de ser "uma ilha de excelência, onde o grosso da população não pode macular seu mármore com os pés sujos da senzala".