Resumo
Depois de um merecido descanso esse blog volta a receber um artigo meu sobre Educação. Dessa vez para tratar de um tema sempre recorrente e quase nunca bem compreendido: a dificuldade, ou quase impossibilidade, de ensinar matemática e disciplinas das ciências exatas no Ensino Médio com base nos currículos homogêneos e seriados atuais. Nesse artigo, utilizando dados do SARESP 2014, mostro por meio de um estudo de caso que não temos nenhuma metodologia efetiva para lidar com a realidade da sala de aula atual nas escolas públicas. Aponto resultados que nos dão uma visão mais realista da heterogeneidade das salas de aula do ponto de vista da proficiência esperada para os alunos numa dada série escolar e, concluo que o formato de aula tradicional, expositiva e baseada em conteúdos, competências e habilidades ditadas por um currículo único e seriado é impraticável nessas circunstâncias.
Palavras-chaves: Educação, Saresp, currículo, metodologia, ensino.
Introdução
É consensual que o Ensino Médio, mas não somente ele, vive uma crise de baixa qualidade sem precedentes. Avaliações externas, pesquisas e a própria vivência cotidiana dos educadores indicam claramente que há uma perda gradativa de qualidade na aprendizagem dos alunos ao longo de sua escolarização e, em especial, no Ensino Médio. Essa perda é facilmente identificada ao se analisar os índices de proficiência dos alunos ao longo dos onze anos de escolarização básica.
O fato de que a perda de qualidade na aprendizagem é gradativa e cumulativa ao longo da escolarização aponta para fatores que nem sempre são levados em conta nas análises de resultados dos exames externos e internos, porque embora percebidos de maneira intuitiva pelos educadores e pesquisadores, raramente são analisados de um ponto de vista mais frio e numérico.
Fala-se, genericamente, que os alunos "pioram a cada ano" e essa parece ser uma impressão geral baseada apenas nos resultados globais de rendimento comparados com turmas de anos anteriores. Queixa-se que os novos alunos chegam cada vez piores, principalmente no Ensino Médio, mas não é habitual a reflexão sobre essa aparente piora.
Para analisar o problema de uma perspectiva mais realista, isto é, menos abstrata e meramente especulativa, partimos de um estudo de caso de uma escola pública paulista que atende o Ensino Fundamental (do sexto ao nono ano) e o Ensino Médio. Analisamos os dados de 2014 do SARESP (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) dessa escola referentes à disciplina de Matemática e confrontamos esses dados com as expectativas de aprendizagem utilizadas nas Matrizes de Referência Para a Avaliação e na Escala de Proficiência utilizada pelo próprio SARESP.
A metodologia empregada pelo SARESP permite que em qualquer ano do processo de escolarização se avalie as competências e habilidades cumulativas de anos anteriores com base no escore de proficiência dos alunos. Para efeitos estatísticos, considerando válidos os resultados apresentados pelo SARESP, pode-se inferir a partir deles a porcentagem de alunos que atendem a proficiência esperada para cada ano do Ensino Básico.
As questões que fundamentam esse estudo de caso podem ser colocadas da seguinte forma:
- Em uma classe de primeiro ano do Ensino Médio, como são distribuídos percentualmente os alunos conforme seus escores de proficiência?
- Cruzando esses dados com as expectativas de aprendizagem de cada ano, como isso indica a heterogeneidade da classe?
- Dadas as respostas às duas questões anteriores, como isso impacta na eficiência da metodologia de aulas expositivas baseadas em um currículo seriado, comumente encontrada nas salas de aula?
A mesma metodologia de análise feita aqui para os alunos ingressantes no primeiro ano do Ensino Médio pode ser feita para todos os demais anos.
Caracterizando a escola
A escola utilizada para esse estudo de caso possui uma posição de relativo destaque nos resultados do SARESP em comparação com as demais escolas do município e do Estado de São Paulo. Sua pontuação (percentual) em Matemática para o nono ano do Ensino Fundamental e a comparação com as demais escolas do município, da Diretoria de Ensino e do Estado é mostrada na figura abaixo.
Como se pode ver nessa tabela, a escola tem mais alunos cuja proficiência é classificada como "Suficiente" do que todas as demais instâncias comparativas. Logo, trata-se de uma escola próxima da média das escolas paulistas, mas ligeiramente mais bem classificada.
Para o ano e a disciplina considerados, a distribuição percentual dos alunos nos níveis de proficiência em Matemática é mostrada na tabela a seguir.
Em uma comparação direta entre as porcentagens de alunos com nível de proficiência adequado entre o nono ano do Ensino Fundamental e o terceiro ano do Ensino Médio se pode facilmente observar a perda de qualidade na aprendizagem ao longo do Ensino Médio. Comparando esses dados com o de outras escolas verificamos que esse é um comportamento generalizado.
Analisando o problema
Para analisarmos o problema proposto (responder as três questões apresentadas acima), vamos tomar como base os resultados na tabela de distribuição percentual dos alunos nos pontos da escala de proficiência, a matriz de referência para a avaliação do SARESP e os níveis de proficiência adequados para cada ano.
Vale lembrar que a matriz de referência traz competências e habilidades que são cumulativas para efeito da medida da proficiência dos alunos, e que estamos supondo que os resultados apresentados pelo SARESP 2014 para a escola analisada são válidos. É importante frisar isso porque existe toda uma discussão sobre a validade ou não do SARESP como instrumento de avaliação de aprendizagem externo.
Questão 1
Para responder a questão 1 tomamos como base os resultados do nono ano do Ensino Fundamental. Justifica-se essa escolha porque os dados são coletados no segundo semestre letivo, quando a proficiência dos alunos já deveria estar, teoricamente, adequada a esse ano e, portanto, os alunos que apresentarem grau de proficiência "Adequado" para essa série serão os mesmos que terão proficiência adequada para iniciar o primeiro ano do ensino médio.
A partir da tabela de proficiência podemos tabular os dados de forma a obter o gráfico abaixo, que mostra a distribuição dos alunos ingressantes no primeiro ano do Ensino Médio por grau de proficiência em Matemática.
Esse gráfico e esses dados são geralmente analisados nas escolas a fim de se propor medidas corretivas que permitam aos alunos com proficiência abaixo do básico e básico recuperam sua aprendizagem a fim de chegar ao grau de proficiência adequado. No entanto, pouco se sabe realmente sobre a proficiência desses alunos e, além disso, o SARESP não fornece o resultado particular de cada aluno, o que impede que se saiba a partir dos seus resultados para quais alunos devem ser tomadas medidas corretivas na aprendizagem.
Dessa forma, as medidas de intervenção propostas quando é feita a análise do SARESP nas escolas orbitam em torno de propostas genéricas. Para se ter uma visão um pouco mais realista do universo desses alunos e refletir sobre abordagens possíveis de intervenção é necessário, pelo menos, responder a questão 2.
Questão 2
A questão 2 parte do pressuposto, que é um consenso entre os educadores, que uma das grandes dificuldades de intervenção decorre da heterogeneidade das classes, fator que é geralmente desprezado nas soluções de intervenção propostas porque não se tem uma medida efetiva dessa heterogeneidade a partir dos resultados brutos do SARESP.
Porém, é possível inferir essa heterogeneidade cruzando os dados da distribuição percentual dos alunos nos pontos da escala de proficiência com as expectativas de aprendizagem e de proficiência de cada ano, indicadas na própria tabela. Dessa forma é possível gerar uma nova tabela onde distribuímos os alunos em conformidade com o ano escolar em que teriam satisfeitas (grau "Adequado") as expectativas de aprendizagem para aquele ano. Fazendo esse cruzamento e tabelando os resultados obtemos o gráfico de colunas a seguir.
Como se pode ver claramente nesse gráfico, os alunos ingressantes no primeiro ano do Ensino Médio que realmente têm condições de aprendizagem adequadas ao currículo desse ano representam apenas 16,7% de uma classe normal. Mas esse gráfico nos permite também as inferências que tanto desejávamos fazer sobre os "outros alunos".
Observando o gráfico vemos que 22,2% dos alunos encontram-se em um patamar de aprendizagem em Matemática correspondente ao oitavo ano. Esses alunos terão dificuldades reais ao serem submetidos ao currículo do primeiro ano do Ensino Médio, pois estão com uma defasagem na aprendizagem de cerca de um ano.
A grande maioria dos alunos ingressantes no primeiro ano do Ensino Médio dessa escola (37,5%) representa, na verdade, um contingente de alunos que estão efetivamente no sexto ano em termos de proficiência em Matemática. É evidente que submeter um aluno do sexto ano do Ensino Fundamental a um currículo do primeiro ano do Ensino Médio é uma brutalidade pedagógica sem precedente.
E o que dizer então dos demais alunos, que representam 23,6% de cada classe, que ainda se encontram em um grau de proficiência equivalente ao ensino fundamental I? Como submeter ao currículo de Matemática do Ensino Médio um aluno que sequer está alfabetizado matematicamente?
Questão 3
A questão 3 parece ter uma resposta bem mais simples depois de respondidas as questões 1 e 2, ou seja, não existe nenhuma metodologia de ensino sendo ensinada nas universidades ou proposta pela Secretaria de Educação capaz de permitir ao professor lidar com esse nível de heterogeneidade em suas classes.
Como corolário da conclusão acima, temos que a metodologia hoje empregada nas escolas, que consiste essencialmente em aulas expositivas com base em um currículo seriado, onde o professor do primeiro ano do Ensino Médio deve ensinar conteúdos e desenvolver habilidades próprias desse ano escolar, evidentemente é uma metodologia perdedora quando aplicada na realidade das escolas.
A comparação mais realista das escolas públicas brasileiras com um cenário semelhante ao descrito acima, fazendo aqui uma extrapolação para todo o país, é aquela em que temos em cada sala de aula uma classe multisseriada, a exemplo das escolas rurais, onde um professor deve simultaneamente atender alunos de diferentes anos. No entanto, a metodologia empregada nesses casos não é a de aulas expositivas baseadas em um currículo unificado e seriado.
Conclusões
Analisando um estudo de caso de uma escola pública paulista que pode ser considerada um exemplo válido de escola "comum" e, supondo a validade dos resultados do SARESP 2014 para essa escola, concluímos que os diferentes níveis de proficiência dos alunos do nono ano do Ensino Fundamental na disciplina de Matemática implicam, necessariamente, na formação de classes de alunos ingressantes no primeiro ano do Ensino Médio excessivamente heterogêneas, onde não faz sentido ter um currículo único para todos os alunos e onde a metodologia tradicional de aulas expositivas é necessariamente ineficiente, independentemente de se inserir atividades inovadoras ou novas tecnologias.
O professor do Ensino Médio, pelas características de sua formação e pelos limites da sua atuação em sala de aula, é necessariamente incapaz de oferecer um ensino qualificado para todos os alunos e é obrigado a oferecer um ensino viável para apenas uma parcela pequena da sala de aula que, nesse estudo de caso, restringe-se a 16,7% dos seus alunos.
Pode-se também inferir que a degradação da qualidade da aprendizagem que se verifica ao longo do processo de escolarização básica se dá em etapas sucessivas, ano após ano, devido à crescente heterogeneidade das classes e a falta de uma metodologia capaz de corrigir as discrepâncias surgidas ainda no Ensino Fundamental. Ao chegarem ao Ensino Médio, por imposições variadas que não cabe serem discutidas aqui, muitos alunos não terão nenhuma oportunidade de aprendizagem oferecidas pelo currículo do Ensino Médio e pela metodologia corrente de aulas expositivas.
Qualquer caminho viável para a correção dos níveis de proficiência dos alunos deve percorrer, necessariamente, todos os anos do processo de escolarização e, ter sempre em vista que são necessárias metodologias de ensino baseadas em modelos de classes heterogêneas, com currículos particularizados e aulas baseadas na assistência individualizada aos alunos ou, quando muito, para pequenos grupos de alunos mapeados por grau de proficiência.
Cabe uma reflexão sobre o impacto da implantação de ciclos, no modelo de progressão continuada, sobre um currículo seriado que é mantido de forma dogmática, tanto quanto o próprio modelo de progressão continuada.
(*) Para citar esse artigo (ABNT, NBR 6023):
ANTONIO, José Carlos. Matemática e Ciências Exatas no Ensino Médio: Um crime de lesa-pedagogia, Aprendendo a ensinar, SBO, 23 agosto. 2015. Disponível em: <http://aprendendoaensinar.blogspot.com/2015/08/matematica-e-ciencias-exatas-no-ensino.html>. Acesso em: [coloque aqui a data em que você acessou esse artigo, sem o colchetes].
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por comentar esse texto.
Como todos os comentários são moderados pode demorar até três dias para que seu comentário seja efetivamente publicado.