domingo, 23 de agosto de 2015

Matemática e Ciências Exatas no Ensino Médio: Um crime de lesa-pedagogia

Resumo

Depois de um merecido descanso esse blog volta a receber um artigo meu sobre Educação. Dessa vez para tratar de um tema sempre recorrente e quase nunca bem compreendido: a dificuldade, ou quase impossibilidade, de ensinar matemática e disciplinas das ciências exatas no Ensino Médio com base nos currículos homogêneos e seriados atuais. Nesse artigo, utilizando dados do SARESP 2014, mostro por meio de um estudo de caso que não temos nenhuma metodologia efetiva para lidar com a realidade da sala de aula atual nas escolas públicas. Aponto resultados que nos dão uma visão mais realista da heterogeneidade das salas de aula do ponto de vista da proficiência esperada para os alunos numa dada série escolar e, concluo que o formato de aula tradicional, expositiva e baseada em conteúdos, competências e habilidades ditadas por um currículo único e seriado é impraticável nessas circunstâncias.

Palavras-chaves: Educação, Saresp, currículo, metodologia, ensino.

Introdução

É consensual que o Ensino Médio, mas não somente ele, vive uma crise de baixa qualidade sem precedentes. Avaliações externas, pesquisas e a própria vivência cotidiana dos educadores indicam claramente que há uma perda gradativa de qualidade na aprendizagem dos alunos ao longo de sua escolarização e, em especial, no Ensino Médio. Essa perda é facilmente identificada ao se analisar os índices de proficiência dos alunos ao longo dos onze anos de escolarização básica.
O fato de que a perda de qualidade na aprendizagem é gradativa e cumulativa ao longo da escolarização aponta para fatores que nem sempre são levados em conta nas análises de resultados dos exames externos e internos, porque embora percebidos de maneira intuitiva pelos educadores e pesquisadores, raramente são analisados de um ponto de vista mais frio e numérico.
Fala-se, genericamente, que os alunos "pioram a cada ano" e essa parece ser uma impressão geral baseada apenas nos resultados globais de rendimento comparados com turmas de anos anteriores. Queixa-se que os novos alunos chegam cada vez piores, principalmente no Ensino Médio, mas não é habitual a reflexão sobre essa aparente piora.
Para analisar o problema de uma perspectiva mais realista, isto é, menos abstrata e meramente especulativa, partimos de um estudo de caso de uma escola pública paulista que atende o Ensino Fundamental (do sexto ao nono ano) e o Ensino Médio. Analisamos os dados de 2014 do SARESP (Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo) dessa escola referentes à disciplina de Matemática e confrontamos esses dados com as expectativas de aprendizagem utilizadas nas Matrizes de Referência Para a Avaliação e na Escala de Proficiência utilizada pelo próprio SARESP.
A metodologia empregada pelo SARESP permite que em qualquer ano do processo de escolarização se avalie as competências e habilidades cumulativas de anos anteriores com base no escore de proficiência dos alunos. Para efeitos estatísticos, considerando válidos os resultados apresentados pelo SARESP, pode-se inferir a partir deles a porcentagem de alunos que atendem a proficiência esperada para cada ano do Ensino Básico.
As questões que fundamentam esse estudo de caso podem ser colocadas da seguinte forma:
  1. Em uma classe de primeiro ano do Ensino Médio, como são distribuídos percentualmente os alunos conforme seus escores de proficiência?
  2. Cruzando esses dados com as expectativas de aprendizagem de cada ano, como isso indica a heterogeneidade da classe?
  3. Dadas as respostas às duas questões anteriores, como isso impacta na eficiência da metodologia de aulas expositivas baseadas em um currículo seriado, comumente encontrada nas salas de aula?
A mesma metodologia de análise feita aqui para os alunos ingressantes no primeiro ano do Ensino Médio pode ser feita para todos os demais anos.

Caracterizando a escola

A escola utilizada para esse estudo de caso possui uma posição de relativo destaque nos resultados do SARESP em comparação com as demais escolas do município e do Estado de São Paulo. Sua pontuação (percentual) em Matemática para o nono ano do Ensino Fundamental e a comparação com as demais escolas do município, da Diretoria de Ensino e do Estado é mostrada na figura abaixo.


Como se pode ver nessa tabela, a escola tem mais alunos cuja proficiência é classificada como "Suficiente" do que todas as demais instâncias comparativas. Logo, trata-se de uma escola próxima da média das escolas paulistas, mas ligeiramente mais bem classificada.
Para o ano e a disciplina considerados, a distribuição percentual dos alunos nos níveis de proficiência em Matemática é mostrada na tabela a seguir.


Em uma comparação direta entre as porcentagens de alunos com nível de proficiência adequado entre o nono ano do Ensino Fundamental e o terceiro ano do Ensino Médio se pode facilmente observar a perda de qualidade na aprendizagem ao longo do Ensino Médio. Comparando esses dados com o de outras escolas verificamos que esse é um comportamento generalizado.

Analisando o problema

Para analisarmos o problema proposto (responder as três questões apresentadas acima), vamos tomar como base os resultados na tabela de distribuição percentual dos alunos nos pontos da escala de proficiência, a matriz de referência para a avaliação do SARESP e os níveis de proficiência adequados para cada ano.
Vale lembrar que a matriz de referência traz competências e habilidades que são cumulativas para efeito da medida da proficiência dos alunos, e que estamos supondo que os resultados apresentados pelo SARESP 2014 para a escola analisada são válidos. É importante frisar isso porque existe toda uma discussão sobre a validade ou não do SARESP como instrumento de avaliação de aprendizagem externo.

Questão 1

Para responder a questão 1 tomamos como base os resultados do nono ano do Ensino Fundamental. Justifica-se essa escolha porque os dados são coletados no segundo semestre letivo, quando a proficiência dos alunos já deveria estar, teoricamente, adequada a esse ano e, portanto, os alunos que apresentarem grau de proficiência "Adequado" para essa série serão os mesmos que terão proficiência adequada para iniciar o primeiro ano do ensino médio.
A partir da tabela de proficiência podemos tabular os dados de forma a obter o gráfico abaixo, que mostra a distribuição dos alunos ingressantes no primeiro ano do Ensino Médio por grau de proficiência em Matemática.


Esse gráfico e esses dados são geralmente analisados nas escolas a fim de se propor medidas corretivas que permitam aos alunos com proficiência abaixo do básico e básico recuperam sua aprendizagem a fim de chegar ao grau de proficiência adequado. No entanto, pouco se sabe realmente sobre a proficiência desses alunos e, além disso, o SARESP não fornece o resultado particular de cada aluno, o que impede que se saiba a partir dos seus resultados para quais alunos devem ser tomadas medidas corretivas na aprendizagem.
Dessa forma, as medidas de intervenção propostas quando é feita a análise do SARESP nas escolas orbitam em torno de propostas genéricas. Para se ter uma visão um pouco mais realista do universo desses alunos e refletir sobre abordagens possíveis de intervenção é necessário, pelo menos, responder a questão 2.

Questão 2

A questão 2 parte do pressuposto, que é um consenso entre os educadores, que uma das grandes dificuldades de intervenção decorre da heterogeneidade das classes, fator que é geralmente desprezado nas soluções de intervenção propostas porque não se tem uma medida efetiva dessa heterogeneidade a partir dos resultados brutos do SARESP.
Porém, é possível inferir essa heterogeneidade cruzando os dados da distribuição percentual dos alunos nos pontos da escala de proficiência com as expectativas de aprendizagem e de proficiência de cada ano, indicadas na própria tabela. Dessa forma é possível gerar uma nova tabela onde distribuímos os alunos em conformidade com o ano escolar em que teriam satisfeitas (grau "Adequado") as expectativas de aprendizagem para aquele ano. Fazendo esse cruzamento e tabelando os resultados  obtemos o gráfico de colunas a seguir.


Como se pode ver claramente nesse gráfico, os alunos ingressantes no primeiro ano do Ensino Médio que realmente têm condições de aprendizagem adequadas ao currículo desse ano representam apenas 16,7% de uma classe normal. Mas esse gráfico nos permite também as inferências que tanto desejávamos fazer sobre os "outros alunos".
Observando o gráfico vemos que 22,2% dos alunos encontram-se em um patamar de aprendizagem em Matemática correspondente ao oitavo ano. Esses alunos terão dificuldades reais ao serem submetidos ao currículo do primeiro ano do Ensino Médio, pois estão com uma defasagem na aprendizagem de cerca de um ano.
A grande maioria dos alunos ingressantes no primeiro ano do Ensino Médio dessa escola (37,5%) representa, na verdade, um contingente de alunos que estão efetivamente no sexto ano em termos de proficiência em Matemática. É evidente que submeter um aluno do sexto ano do Ensino Fundamental a um currículo do primeiro ano do Ensino Médio é uma brutalidade pedagógica sem precedente.
E o que dizer então dos demais alunos, que representam 23,6% de cada classe, que ainda se encontram em um grau de proficiência equivalente ao ensino fundamental I? Como submeter ao currículo de Matemática do Ensino Médio um aluno que sequer está alfabetizado matematicamente?

Questão 3

A questão 3 parece ter uma resposta bem mais simples depois de respondidas as questões 1 e 2, ou seja, não existe nenhuma metodologia de ensino sendo ensinada nas universidades ou proposta pela Secretaria de Educação capaz de permitir ao professor lidar com esse nível de heterogeneidade em suas classes
Como corolário da conclusão acima, temos que a metodologia hoje empregada nas escolas, que consiste essencialmente em aulas expositivas com base em um currículo seriado, onde o professor do primeiro ano do Ensino Médio deve ensinar conteúdos e desenvolver habilidades próprias desse ano escolar, evidentemente é uma metodologia perdedora quando aplicada na realidade das escolas.
A comparação mais realista das escolas públicas brasileiras com um cenário semelhante ao descrito acima, fazendo aqui uma extrapolação para todo o país, é aquela em que temos em cada sala de aula uma classe multisseriada, a exemplo das escolas rurais, onde um professor deve simultaneamente atender alunos de diferentes anos. No entanto, a metodologia empregada nesses casos não é a de aulas expositivas baseadas em um currículo unificado e seriado.

Conclusões

Analisando um estudo de caso de uma escola pública paulista que pode ser considerada um exemplo válido de escola "comum" e, supondo a validade dos resultados do SARESP 2014 para essa escola, concluímos que os diferentes níveis de proficiência dos alunos do nono ano do Ensino Fundamental na disciplina de Matemática implicam, necessariamente, na formação de classes de alunos ingressantes no primeiro ano do Ensino Médio excessivamente heterogêneas, onde não faz sentido ter um currículo único para todos os alunos e onde a metodologia tradicional de aulas expositivas é necessariamente ineficiente, independentemente de se inserir atividades inovadoras ou novas tecnologias.
O professor do Ensino Médio, pelas características de sua formação e pelos limites da sua atuação em sala de aula, é necessariamente incapaz de oferecer um ensino qualificado para todos os alunos e é obrigado a oferecer um ensino viável para apenas uma parcela pequena da sala de aula que, nesse estudo de caso, restringe-se a 16,7% dos seus alunos.
Pode-se também inferir que a degradação da qualidade da aprendizagem que se verifica ao longo do processo de escolarização básica se dá em etapas sucessivas, ano após ano, devido à crescente heterogeneidade das classes e a falta de uma metodologia capaz de corrigir as discrepâncias surgidas ainda no Ensino Fundamental. Ao chegarem ao Ensino Médio, por imposições variadas que não cabe serem discutidas aqui, muitos alunos não terão nenhuma oportunidade de aprendizagem oferecidas pelo currículo do Ensino Médio e pela metodologia corrente de aulas expositivas.
Qualquer caminho viável para a correção dos níveis de proficiência dos alunos deve percorrer, necessariamente, todos os anos do processo de escolarização e, ter sempre em vista que são necessárias metodologias de ensino baseadas em modelos de classes heterogêneas, com currículos particularizados e aulas baseadas na assistência individualizada aos alunos ou, quando muito, para pequenos grupos de alunos mapeados por grau de proficiência.
Cabe uma reflexão sobre o impacto da implantação de ciclos, no modelo de progressão continuada, sobre um currículo seriado que é mantido de forma dogmática, tanto quanto o próprio modelo de progressão continuada.

(*) Para citar esse artigo (ABNT, NBR 6023):

ANTONIO, José Carlos. Matemática e Ciências Exatas no Ensino Médio: Um crime de lesa-pedagogia, Aprendendo a ensinar, SBO, 23 agosto. 2015. Disponível em: <http://aprendendoaensinar.blogspot.com/2015/08/matematica-e-ciencias-exatas-no-ensino.html>. Acesso em: [coloque aqui a data em que você acessou esse artigo, sem o colchetes].

segunda-feira, 24 de maio de 2010

O fracasso do Ensino Médio público - a senzala pós-moderna

O Ensino Médio público tem se mostrado um grande fracasso dentre as etapas do Ensino Básico. É inegável que os alunos egressos do Ensino Médio público raramente podem ser considerados alfabetizados no sentido pleno do termo e, quase invariavelmente, desistem de continuar seus estudos ou acabam estudando em faculdades particulares de "péssima qualidade", segundo a avaliação de parte da "elite das universidades públicas" que faz parte dos formadores de opinião da mídia. Nos exames do ENEM, ou mesmo do Saresp (em São Paulo), os resultados do Ensino Médio são deploráveis. Se sabemos disso tudo, porque nenhum de nós faz nada a respeito?

Talvez porque o Ensino Médio regular público tem sido simplesmente desprezado de todas as agendas de melhoria da qualidade do Ensino Público dos nossos políticos.. Talvez porque essa falta de vontade de melhorar o Ensino Médio público parta também de dentro da própria Universidade Pública e da elite que ela tem criado, e que se acredita pensante, que formula políticas públicas e dá suporte aos políticos da vez. Ou, ainda, talvez seja porque o Ensino Médio público tenha a pretensão histórica de ser uma etapa intermediária entre o Ensino Fundamental e o Ensino Superior, ao invés de assumir de vez uma identidade mais próxima do Ensino Técnico, à qual estaria, talvez, melhor associada.

Desde a década de 70 o Ensino Médio público vem sendo sucateado, juntamente com o Ensino Fundamental, mas de forma bem mais acentuada nas últimas duas décadas. As escolas perderam seus laboratórios de ciências, suas bibliotecas, seus bons professores (que migraram para a rede privada) e seu status de "locais de ensino". Hoje as escolas públicas são melhores vistas como depósitos de crianças e adolescentes que os mantém trancados sob grades enquanto os pais trabalham. Do lado didático-pedagógico-operacional as grades horárias das disciplinas foram reduzidas, inseriu-se novas disciplinas, achatou-se os salários dos professores, implantou-se modelos pedagógicos inadequados e esdrúxulos e, por fim, despejou-se na escola de Ensino Médio todo o pacote de alunos analfabetos-funcionais provenientes do fracasso da progressão continuada, implementada no Ensino Fundamental para dar suporte a uma universalização artificial do ensino público.

Portanto, antes de continuarmos com esse tema, há uma pergunta que precisa ser refletida (porque "respondida" seria muita pretensão) por todos que trabalham com Educação: como é possível para o professor do Ensino Médio ensinar conteúdos e disciplinas "do Ensino Médio" para alunos da sexta-série do Ensino Fundamental? Os números oficiais, resultantes dos índices de aprendizagem medidos por exames como o Saresp (de São Paulo), indicam que os alunos que chegam ao Ensino Médio, em sua maioria vindos do sistema de progressão continuada (oficial ou na forma de "caixa dois"), estão,  no mínimo, três anos defasados em termos de aprendizagem (em alguns locais essa defasagem é ainda maior, bem maior!). Ou seja, no primeiro ano do Ensino Médio recebemos alunos que estão, de fato, na sexta-série do Ensino Fundamental.

O currículo do Ensino Médio é uma tremenda piada de mau gosto, pois pressupõe que o aluno deva aprender uma infinidade de temas e "conteúdos" em um espaço de tempo irrisório. Em física, por exemplo, o aluno precisa aprender todo o conteúdo da física classica e mais os rudimentos de física moderna em um tempo total de 240 horas, das quais nem metade é efetivamente destinada ao "tempo de aprendizagem". A mesma situação se verifica em outras disciplinas e, em algumas, é ainda pior.

Se antes o aluno tinha que aprender toda a história da humanidade e, em especial, toda a história do Brasil, em apenas duas aulas semanais, agora, em muitas escolas, ele tem que aprender tudo isso em metade do tempo, porque a outra metade do tempo, que já era irrisório, transformou-se em uma nova disciplina (geralmente filosofia ou sociologia, mas não necessariamente). Então ele não aprende nem história, nem filosofia e nem sociologia. Simples assim!

A cada ano algum "sábio" propõe uma nova disciplina para o Ensino Médio, mas ninguém quer excluir as que já existem, e muito menos os tópicos curriculares das disciplinas atuais. É como querer enfiar cinco elefantes em um fusca! E os "sábios" que pensam o currículo e a educação nos respondem: "É simples, coloquem dois elefantes nos bancos da frente e três no banco traseiro!".

Um número cada vez maior de alunos desistem do Ensino Médio público porque "não gostam de estudar", acham a escola "chata" e não têm motivação sequer para irem às aulas. Um número um pouco menor desiste porque arruma algum subemprego e acredita que com isso poderá encaminhar o resto de sua vida,  constituir uma família e educar bem os seus filhos. Muitos pais apóiam essa idéia porque também não acreditam que a escola fará alguma diferença e que o trabalho, em si, já é uma ótima escola. Em uma primeira aproximação, bastante ingênua até, poderíamos imaginar que basta então termos aulas mais interessantes e esses alunos não deixarão mais a escola, mas mesmo com aulas interessantes (diversificadas, contextualizadas, fazendo uso de recursos modernos, etc.) esses alunos não têm interesse e continuam desistindo da escola. O que seria então "interessante para esses alunos"?

Sabemos, da pedagogia, da psicologia e da observação pura e simples desses alunos adolescentes e jovens, que um aluno não se interessa por aquilo que não consegue aprender ou por aquilo que esteja distante demais de sua realidade e de seus interesses imediatos. Adolescentes nunca tiveram, e nem terão, interesses gritantes em aprender física, matemática, química, história, etc., simplesmente porque vivem uma época de suas vidas onde há outros interesses bem mais prementes: sexo, relacionamento social, auto-afirmação, aceitação pelo grupo, independência econômica dos pais e alguma diversão, dentre outros. São poucas e raras as oportunidades para um professor contemplar esses interesses em uma aula de física ou de matemática, por exemplo.

Em outros tempos, e para outros públicos que não o que atualmente ocupa os assentos das escolas públicas, além de abrir portas para o mercado de trabalho o Ensino Médio público também significava uma transição e uma preparação para o Ensino Superior. Tinha-se a convicção de que era preciso aprender os conteúdos dessas disciplinas para que se pudesse ter acesso à universidade. E, nessa época, ou ainda hoje em dia para esse público "seleto", oferecia-se o chamado "ensino propedêutico", isto é, aquele cuja função era apenas preparar o aluno para continuar aprendendo em outro nível superior. Tão criticado que foi, o ensino propedêutico acabou disfaçado no novo paradigma do "aprender a aprender", pois aprende-se a aprender com que objetivo senão o de aprender um pouco mais logo adiante? É claro que alguém dirá que o paradigma de "aprender a aprender" inclui bem mais do que apenas aprender para continuar aprendendo conteúdos de disciplinas, e inclui mesmo, mas no fundo já não era isso o que se fazia antes, no chamado ensino propedêutico do qual grande parte de nós, com mais de quarenta, somos fruto?

O Ensino Médio público também já viveu seus dias de ensino preparatório para carreiras profissionais, ou profissiionalizantes, e ainda hoje se fala, oficialmente, em um Ensino Médio público que capacite o aluno para enfrentar o desafio do mercado de trabalho. Apesar disso, a falta de mão obra qualificada aumenta a cada dia e é cada vez mais difícil conseguir formar bons engenheiros, médicos e professores, por exemplo. Sem falar nos profissionais de nível técnico.

Hoje o Ensino Médio público não preparada mais para a univesidade, e continua não preparando para o trabalho e menos ainda para a vida. É triste ter que quase concordar com o aluno que o abandona porque a escola não lhe interessa, mas de fato o que há de interessante nesse Ensino Médio público que nada ensina, para nada serve e a ninguém contribui com coisa alguma?

Sem perspectivas, oriundo de um ensino desvinculado da realidade, do mercado de trabalho e do próprio currículo, o aluno egresso do Ensino Médio sai da escola com a nítida sensação de que apenas perdeu três anos de sua adolescência. E talvez tenha sido isso mesmo.

Entremeio a tanto fracasso e desolação, parece estar nascendo novas iniciativas de "reformulação do Ensino Médio". Isso soa moderno, mas essas reformulações estão ocorrendo desde que o Ensino Médio foi criado e até agora nenhuma conseguiu dar algum sentido para esses três anos que os adolescentes perdem em suas vidas "não aprendendo nada útil", e que tem servido apenas para distribuir certificados que nada certificam e para mascarar um pouco mais as estatísticas oficiais sobre a universalização do ensino. Será que não seria então o caso de simplesmente extinguirmos o Ensino Médio público regular e transformá-lo de vez em um "Ensino Técnico" que, pelo menos, dê algum significado e alguma importância real para ele?

A universidade pública, por sua vez, nunca se importou realmente com o que acontece no Ensino Médio público, pois sempre aplicou exames vestibulares para selecionar aqueles candidatos que ela julga terem melhores condições de ocuparem suas cadeiras: a elite intelectual, segundo ela mesma se orgulha em reafirmar sempre. A universidade sempre se viu, e ainda se vê, como algo "à parte da educação básica"  e que "vive em uma ilha de excelência por mérito próprio" (com exceção, talvez, dos seus próprios departamentos de educação, que formam professores para a Educação Básica - poucos, na verdade - e que vivenciam um pouco mais de perto a realidade do Ensino Médio).

Porém, após a "democratização" do acesso ao Ensino Superior, verificada com o aumento exponencial de vagas oferecidas por universidades particulares, toda a "sujeira" que essa ilha sempre despejou no oceano social, como subproduto de uma educação excludente (como a rejeição clara a um ensino que atinja a  maioria da população) está vindo à tona e poluindo nossas "belas praias sociais". Já não se pode mais esconder que a as universidades públicas estão diretamente relacionadas ao sucesso ou ao fracasso das políticas públicas e dos modelos pedagógicos que elas mesmas elaboram.

Cada vez mais temos profissionais formados por universidades privadas reconhecidas pelo MEC cuja formação é ridícula e temerária (e as universidades públicas também começam a contribuir para o aumento desse número). Só para ficar em dois exemplos onde isso pode ser bem mensurado, voltemos os nossos olhos para os advogados e para os professores: em ambos os casos o número desses profissionais formados e diplomados que conseguem passar no "exame da ordem" (no caso dos advogados) ou em concursos públicos para o magistério (no caso dos professores) é completamente inexpressivo. Em algumas áreas, como no magistério da disciplina de física, esse número é quase nulo.

Dirão, os iluminados de algumas dessas universidades públicas, que a culpa é do péssimo ensino que as universidades particulares oferecem aos seus alunos (como que dizendo: veja como "nós" somos bons!), mas porque esses alunos não estão então na universidade pública, sendo beneficiados por esses excelentes professores que se arrogam ao direito de julgar o resto do mundo como incompetente, ao invés de estarem nessas universidades meia-boca que tanto se critica? A resposta é bem simples: porque a universidade pública não é assim tão pública e rejeita a grande maioria dos alunos egressos do Ensino Médio público, obrigando-os a estudarem nas universidades particulares que os aceitam.

Muitos dirão que é uma questão de "mérito", onde apenas os "bons alunos" podem usufruir do ensino gratuito dessas universidades, mas que mérito essa universidade têm ao se apartar da sociedade e se julgar no direito de escolher seus alunos? Justamente por serem públicas e, principalmente, por terem tantos recursos materiais e humanos, elas não deveriam ter a compentência que gostam tanto de exigir das outras universidades e do Ensino Médio público: a competência de ensinar bem a qualquer um?

A Fuvest, fundação encarregada de selecionar os alunos da USP, por exemplo, recusou 117.332 alunos no seu último vestibular (2010), ou seja, 91,5% dos candidatos! Imagine que glória seria para o professor do Ensino Médio público se ele pudesse escolher apenas 9 de cada 100 alunos da escola para os quais lecionar! Certamente teríamos um Ensino Médio público de excelência, não é? Ou se, em uma dada escola de Ensino Médio qualquer, defensora do pressuposto do "mérito", 91,5% dos alunos aprovados na oitava série (ou nona série do novo Ensino Fundamental de nove anos) fossem recusados no Ensino Médio por não serem bons alunos ou não demonstrarem aptidão para prosseguirem seus estudos nesse nível? O que diriam os pedagogos da USP a respeito? O que diriam os políticos a respeito? O que diria a sociedade a respeito?

O que essa lógica da meritocracia, tão na moda, nos diz sobre o Ensino Médio público? Parece que a  única lógica que restou para o Ensino Médio público atual resume-se a produzir semi-analfabetos para suprir o mercado de mão-de-obra barata, ou rechear os bolsos dos proprietários de universidades particulares que serão taxadas como ruins porque receberam alunos ruins, mas que não se importam e os devolvem mais tarde igualmente ruins, apenas com menos dinheiro. Os "bons alunos" já não estão no Ensino Médio público e, como "os alunos de antigamente", optaram por um ensino propedêutico que os leve para a univesidade pública, essa sim, excelente e meritocrática que, por sua vez, acredita que tudo isso seja "natural" e que ela esteja cumprindo seu papel de ser "uma ilha de excelência, onde o grosso da população não pode macular seu mármore com os pés sujos da senzala".

quarta-feira, 24 de março de 2010

Mais uma fábula do Prof. Giz & Tal

Os olhos ainda estavam pregados de sono quando o Prof. Giz & Tal foi acordado pelo canto do galo. Do galo??? Não há mais galos nessa vizinhança...

Pela janela, além do sol forte do fim do verão, a paisagem estava toda mudada. Parecia toda envelhecida. Como poderia ter ocorrido isso? Só poderia ser um sonho! Belisca aqui, belisca ali e, nada! Doeu, mas a paisagem ainda estava lá.

Angustiado nosso querido professor correu procurar seu jaleco no armário e apressou-se rumo à escola. A escola era sua única referência desde sempre. Haveria ainda escola nesse seu pesadelo?

Sim, havia escola!

Que felicidade! Ela estava lá, e era praticamente igual à sua, exceto por não ter muita iluminação, ter um cheiro forte de mofo e umas pessoas estranhas que ele nunca havia notado antes.

- Anda logo pirralho! Gritou o professor com a varinha de marmelo em punho.

- Tinha que ser o Gizinho a chegar atrasado novamente, não? E tome varada de marmelo na bunda.

Totalmente sem saber o que fazer, e percebendo agora que seu jaleco era de aluno e não de professor, nosso amado mestre adentrou assustado ao sacrossanto recinto do saber.

Diante de si uma sala relativamente grande e mal arejada, carteiras de madeira enfileiradas, todos sentados e calados olhando para um enorme quadro verde com alguns rabiscos mal escritos com giz. Sobre a mesa um grande caderno de anotações manuscritas e atrás dela uma figura sombria e autoritária empunhando não mais uma varinha de marmelo, mas sim um ícone da tecnologia pedagógica que ele mesmo, nosso Prof. Giz & Tal, já chegou a afirmar um dia ter saudades: uma Palmatória!

- Gizinho, venha cá e traga a sua lição de casa! Bradou o professor.

- Mas, mas...

- O quê? Você não fez a lição?! 

Aquela imensa figura cresceu então sob seus olhos e aproximou-se com passos firmes...

- Seu merdinha, você não fez a lição de casa? Como ousa?! Quem você pensa que é? O que mais tem feito além de estudar o que eu mando? Dê-me aqui essa mão inútil que só vai servir para amassar barro no seu futuro sem futuro, seu fedelho miserável e imprestável!

Dez palmadas depois...

Trrrrim... Chacoalha o velho despertador. Assustado o Prof. Giz & Tal pula da cama e abre a janela... Ufa! Foi só um sonho! Não há galos e nem paisagens estranhas.

Apressado abre a porta do velho guarda-roupa e encontra seu jaleco, e ele é de professor! Toma seu café rapidinho, pega sua caderneta e seu velho caderno de matérias, onde tem anotado todas as aulas. Quase esqueceu da caixa de giz. Feliz tomou o rumo da escola, sua única referência, e agradeceu por ter sido apenas um sonho improvável de uma escola que não existe mais.


(*) Esta fábula se baseia no mesmo personagem criado no artigo "E agora, mestre Giz?", publicado no meu blog Professor Digital. Se tiver um tempinho a mais, dê uma olhada também nesse artigo.