Todo ano, toda escola, todo mês, toda classe, todo dia, todo aluno, tudo muda o tempo todo. E se não mudarmos também, se não acompanharmos as mudanças e nos inserirmos nelas, o mundo nos mudará assim mesmo e nos tornará ultrapassados e obsoletos. É nesse mundo sempre novo e diferente, onde os problemas já não podem ser apenas obstáculos a nos deterem, mas antes de tudo desafios a serem superados, em que ensinar passa a ser uma arte: a arte de estar sempre aprendendo.
quinta-feira, 26 de maio de 2005
A síndrome da cleptomania avaliacional - IV
Voltando ao tema da “cola”, vamos tratar agora da quarta razão apontada para a cola dos alunos:
4 - A punição nunca é tão freqüente e suficientemente desencorajadora em comparação com os "benefícios" da cola, isto é, a relação custo-benefício indica que "colar compensa".
Primeiramente vamos recordar que só são punidos os alunos que são efetivamente pegos colando e estes representam um número muito pequeno quando comparado ao número total de alunos que admitem colar. Aliás, é curioso como uma quantia razoável de alunos “admite”, com uma naturalidade incrível, que cola nas provas. Alunos que não são flagrados colando raramente são culpabilizados, pois é relativamente difícil provar que um aluno colou com base apenas na sua resposta escrita.
Assim, para que um aluno que cola possa ser punido, ele precisa primeiro ter sido pego em flagrante. Cenas em que se vê o professor tenso andando incansavelmente pela sala, olhando desconfiado para todos os cantos e despindo seus alunos com os olhos em busca de papeizinhos escondidos embaixo das carteiras, no estojo ou nas palmas das mãos, são cenas que todos já vimos e que talvez já tenhamos encenado também.
Vigiar uma sala de trinta, quarenta alunos, no mínimo, tratando a todos como potenciais criminosos prestes a cometerem um delito, não me parece ser muito apropriadamente uma tarefa pedagógica. Talvez se pareça muito mais com a tarefa dos seguranças de grandes lojas e hipermercados, que se esforçam para que ninguém esconda sobre a roupa alguma bugiganga qualquer. Mas essa é a função do professor no “dia da prova”, dia em que ele sabe que “não dará aula”, dia algumas vezes visto como “a oportunidade de vingança”.
Em tempos idos, e graças damos por não voltarem mais, era comum professores “revistarem” alunos suspeitos, revirarem seus estojos, bolsos e bolsas. Alunos eram obrigados a dobrarem as mangas, mostrarem as palmas das mãos e os assentos das suas cadeiras. Quem não se lembra disso que dê graças.
Nesses tempos, e em muitos casos ainda hoje, quando um aluno era pego colando ou tentando colar, tinha sua prova anulada e ficava com nota zero. Pouco importava se havia colado a prova toda, uma resposta apenas ou mesmo que nem houvesse colado coisa alguma. A punição era imputada ao seu comportamento antiético, discutido no texto anterior sobre esse tema, e em nome dessa ética se abolia a “avaliação” propriamente dita, substituindo-a por uma medida punitiva que, na prática, significava o mesmo que reduzir o conhecimento do aluno a nada. Alunos pegos colando sempre foram igualados aos alunos que nada sabiam, à escória "incapaz de acompanhar as aulas” e “imprópria para a escolarização”.
O aluno “colador”, quando era pego, era exposto e execrado em praça pedagógica pública. Primeiro era exposto ao ridículo diante dos colegas da classe, depois ia para a diretoria, onde ouvia absurdos sobre o ato inominável e abominável que houvera cometido contra o sacrossanto sistema de avaliação escolar e, por último, era entregue aos pais, carrascos finais que, humilhados pelo comportamento dos filhos, encarregavam-se das punições domésticas. Alguns pais e educadores acreditavam que esse era um sistema muito eficaz e desencorajador. Mas não era. Esse sistema apenas permitiu que se produzisse na escola “especialistas em cola”, que se desenvolvessem métodos brilhantes de ocultação de provas e, finalmente, que a “esperteza de quem não é pego” fosse valorizada a tal ponto que alunos que colavam e não eram pegos tornavam-se “alunos brilhantes”.
Hoje em dia muita coisa mudou. Já não se pode mais “revistar alunos” impunemente, revirar suas coisas, humilhá-lo diante da classe e nem mesmo puni-lo com “nota zero”. E, embora muitos professores e diretores imaginem que isso é ruim, a verdade é que isso é muito bom. O aluno que cola não é um delinqüente, a cola não é um crime abominável e a prova, essa que passa quase desapercebida nessa história, não é realmente um bom instrumento de avaliação do aprendizado.
A história já nos ensinou que as punições aplicadas para inibir a cola, mesmo quando eram absurdamente desproporcionais, inumanas, e mesmo criminosas, não surtem o efeito desejado. Já sabemos que não é possível punir sempre, não podemos punir todos e nem podemos punir de qualquer maneira e na proporção de nossas vontades. Mas se punir não resolve, então o que podemos fazer? Será que só nos resta sentar e chorar?
Talvez haja outra saída e se possa encontrá-la procurando melhor e em lugares mais acertados. Podemos começar essa busca refletindo sobre os textos anteriores dessa série, onde já discutimos algumas das razões dos alunos colarem, mas também podemos nos perguntar se os alunos colariam com tanto afinco e sujeitos a tantos riscos se não almejassem um prêmio tão valioso: a nota que os representa como “pessoas classificadas por competência”.
Se pudermos resumir todo o aprendizado do aluno em uma única nota, obtida em uma única prova, talvez duas, e se essa nota representar oficialmente esse nosso aluno diante da comunidade, então talvez o aluno veja grandes razões para se preocupar em “conseguir uma boa nota”, ou seja, ele terá bons motivos para colar. Mas será que esse aluno colaria se suas avaliações fossem diferentes?
Se um aluno for avaliado todos os dias, por todos os seus atos, todos os seus trabalhos e atividades, por sua participação, colaboração, empenho, enfim, por tudo aquilo que ele realmente é ao longo de um determinado período, geralmente um bimestre, será que ele colará? Colará seu empenho, sua participação, suas atividades, seus trabalhos? Colará quando estiver trabalhando em grupo? Colará quando não houver uma “nota” para avaliá-lo?
Enquanto o aluno for avaliado por uma nota e essa nota for produto de uma avaliação parcial, incompleta, estressante e baseada em sua capacidade de reproduzir (colar!) um determinado conhecimento que não é dele, certamente a relação custo-benefício da cola será francamente favorável a esta última. Em um sistema de ensino onde os alunos são avaliados por provas apenas, e essas provas nada mais são do que um conjunto de perguntas ou problemas cujas respostas e soluções já estão “prontas”, colar é benéfico ao aluno; não porque isso seja uma atitude correta que ele deva ter, mas porque ela é menos incorreta do que simplesmente sujeitar-se a ser classificado espuriamente por um instrumento ruim: a prova.
Fica então uma última pergunta para nossa reflexão: colar é um verbo transitivo ou intransitivo?
Fui...
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