Todo ano, toda escola, todo mês, toda classe, todo dia, todo aluno, tudo muda o tempo todo. E se não mudarmos também, se não acompanharmos as mudanças e nos inserirmos nelas, o mundo nos mudará assim mesmo e nos tornará ultrapassados e obsoletos. É nesse mundo sempre novo e diferente, onde os problemas já não podem ser apenas obstáculos a nos deterem, mas antes de tudo desafios a serem superados, em que ensinar passa a ser uma arte: a arte de estar sempre aprendendo.
sábado, 21 de maio de 2005
A síndrome da cleptomania avaliacional - III
Depois de algum tempo sem comparecer nesse blog, consegui finalmente um tempinho para dar continuidade à série sobre a cola. Nesse post eu comento a terceira razão pela qual, a meu ver, os alunos colam:
3 - O aluno acredita que colar é "normal" e parte do procedimento de ensino-aprendizagem, uma parte "extra-oficial", mas que já está incorporada à prática escolar por todos.
É claro que para falar em “normalidade da cola” precisamos falar em “ética”.
O termo “cola”, além da acepção natural: [Do gr. kólla, 'goma'.] S. f. 1. Substância ou preparado glutinoso para fazer aderir papel, madeira e outros materiais; goma - tem também uma segunda acepção, “brasileira e educacional” - 2. Bras. Cópia feita clandestinamente nos exames escritos; fila.
Colar é isso mesmo: copiar de forma clandestina, isto é, não autorizada, em exames (não apenas escritos); é também sinônimo de “furto”, “trapaça”, “desonestidade”.
Reparem bem que “copiar de forma clandestina” é cola, é feio e deve ser punido, mas nem toda cópia é clandestina, não é? Quantas e quantas vezes professores obrigam seus alunos a colarem respostas do livro no espaço destinado a elas nos seus cadernos? Quantas e quantas vezes um pequeno descuido nessa cópia é chamado de “erro”, pois está “diferente do livro”? Quantos questionários com respostas padronizadas já não foram “decorados” para as provas?
Quem cola quer copiar, não quer produzir, não quer criar, não quer interpretar, não quer opinar, não quer participar com seu conhecimento próprio... Mas, diabos! Não é exatamente isso, produzir, criar, interpretar, opinar, participar, etc., que um número gigantesco de alunos aprendem que não devem fazer na escola?
Quando se enfatiza nas escolas que o que importa no processo de ensino-aprendizagem é a posse de um suposto “conhecimento correto”, em detrimento de outros alternativos, incompletos, brutos e mesmo absurdos, e quando se atribui valor apenas à capacidade do aluno de fornecer as respostas “esperadas”, se está justamente aniquilando sua capacidade criativa, sua iniciativa como ator do processo de ensino-aprendizagem e sua capacidade de articular seus conhecimentos.
O aluno que conseguiu decorar as vinte perguntas e respostas do questionário que o professor preparou para a prova, e que consegue reproduzir dez dessas respostas na prova, ficará com nota dez e será considerado “brilhante”. O outro, que colou as dez respostas do primeiro, também tirará dez e será considerado brilhante. Um terceiro, que tenha decorado apenas cinco respostas, será considerado apenas “regular” e, finalmente, um quarto aluno que tenha decorado apenas duas respostas será considerado “medíocre”. Mas a grande verdade é que um mês depois, ou quem sabe um ano ou uma década, todos os quatro terão esquecido as respostas, tenham elas sido decoradas ou não. A quem faltou ética? Ao aluno que decorou as respostas, mas que será incapaz de lembrar delas alguns dias depois, e que talvez nem saiba o que elas significam? A quem se lembrou apenas de parte das respostas? Ou seria a quem decidiu que, sendo inútil decorar as respostas, melhor seria arrumá-las de qualquer maneira e despender seu precioso tempo fazendo coisas mais agradáveis do que decorar respostas inúteis?
Arrisco-me a dizer que, se faltou ética, faltou ética ao professor que deu como única opção ao aluno “colar” as respostas, quer tenha sido uma “cola de memória”, quer tenha sido uma “cola do colega” ou, ainda, uma “cola do papel-lembrete”. Mas o mais curioso é que para nenhum desses citados acima terá faltado ética segundo a “ética escolar”, pois somente o aluno que é “pego colando” é que leva a pecha de “desonesto”. Alunos que colam e não são pegos são tratados como “bons alunos”, pois nessa ótica míope, onde apenas as notas dos alunos os classificam como “bons” ou “ruins”, o aluno que cola e não é pego tem os mesmo predicados do outro capaz de decorar tudo: ele tem nota! E não é raro se ouvir dizer que o aluno que “sabe colar” é “esperto” e que o que é pego colando “é tão burro que nem sabe colar”. E se for esse tipo de ética que a escola quer ensinar e valorizar, então não seria melhor fechar as escolas?
A meu ver é mais do que natural que a ética dos alunos que colam seja a mesma ética de muitos professores: uma ética imediatista e pragmática, baseada em resultados mensuráveis, inumana e indiferente aos métodos empregados no processo de ensino-aprendizagem. Então, chamar os alunos que colam de “desonestos” não passa de pura hipocrisia, pois o próprio sistema os ensina a colar o tempo todo e os reprime sempre que não conseguem colar corretamente ou que se arriscam a dar "respostas próprias".
Colar, para o aluno, não é antiético, pois não é nada além do que executar um procedimento de rotina do seu processo de ensino-aprendizagem, algo que lhe foi sendo ensinado anos a fio, para se assegurar de que sua resposta não seja dele mesmo, mas sim de alguém cuja autoridade se apresenta como validadora dessa resposta: o professor, o livro, ou ambos.
Porque tantos alunos sempre perguntam se as respostas devem ser dadas "à lápis ou à caneta", ou então se devem ser escritas "com as próprias palavras"? Quem nunca ouviu essas perguntas? Seriam perguntas realmente tolas, ou teriam por trás delas um processo de aniquilação da criatividade e da individualidade do aluno em troca de "respostas corretas"?
Mas o que dizer do aluno que não estudou nada e copiou tudo do colega ao lado, mesmo que o colega ao lado também não saiba as "respostas corretas"? Não seria esse aluno um "folgado" a agir de forma desonesta?
Talvez sim, talvez não. A pratica mostra que quase ninguém cola de outro colega se não achar que esse outro colega sabe mais que ele, ou seja, se não vir no colega uma forma de “validar” as respostas. Isso parece lógico do ponto de vista da lógica míope de resultados em forma de notas. Quem tem boas notas é “bom”, logo, é uma fonte confiável para se colar. Mas a prática também mostra que muitos colam de colegas tão “ruins de nota” quanto eles mesmos. Porque será? Desonestidade? Burrice? Ou seria... Hábito!
Reproduzir repostas alheias é tão comum na escola que até mesmo a reprodução de uma resposta profundamente “suspeita”, vinda de um aluno sabidamente “ruim de nota”, torna-se melhor do que arriscar uma resposta própria do aluno quando este já se convenceu de que suas respostas não têm valor se não forem respaldadas em “alguma coisa fora de sua mente”. A insegurança que se aprende na escola, a ética de resultados em forma de notas e a falta de estímulo ao protagonismo são profundamente visíveis nesse comportamento aparentemente “ilógico” de se abrir mão de uma resposta própria para se copiar outra que, sabidamente, estará errada.
Em uma avaliação onde os alunos são informados antecipadamente que podem consultar qualquer material (embora nenhum deles contenha "respostas prontas"), menos os colegas (isto é, não devem colar), e onde suas notas não terão qualquer valor, ou seja, onde podem errar a vontade sem serem punidos por isso e onde não serão premiados pelos acertos, ainda assim se verifica que alguns alunos “colam” dos colegas! Porque colam então? Desonestidade? Vê-se que o “buraco” é bem mais abaixo, não é?
Bom, por hoje chega. Fui...
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Parabéns pelo texto! :-)
ResponderExcluirAté
Luis Brudna
Parabéns! Ótimo texto!
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ResponderExcluirPARABÉNS PELO TEXTO
ResponderExcluirSUA EXPLANAÇÃO FOI CORRETA,
POIS INFELIZMENTE ESTE É O SISTEMA QUE HOJE ESTAMOS SUBMETIDOS .....
UM ABRAÇO